quarta-feira, 22 de setembro de 2010

SAUDADE DA CRIANÇA QUE HÁ EM MIM
















ou esse mês das crianças me fez pensar

Estou escrevendo esse texto e me recordando das inúmeras vezes que esse assunto foi citado de alguma maneira em diferentes momentos na arte, se atentarmos o olhar, aprender a olhar e não apenas ver, poderemos encontrar crianças brincando em telas, pintadas a óleo, esculturas, vídeos, fotografias (...), e como não poderia deixar de ser na literatura. Desde uma pintura, filmes a literatura. Alguns desses artistas retrataram as crianças de sua terra natal, Portinari, por exemplo, em uma série maravilhosa de telas, retratou como anjos os meninos e meninas de sua Brodowski, voando, rodando seus piões, soltando suas pipas, correndo... e outra infinidade de peraltices que só as crianças poderiam maestrar, e que nós adultos deixamos escondido em algum canto de nosso ser.

Lembro-me de quando estava na escola, quando menino, tudo me parecia colossal, escadarias, que hoje desço em segundos, me eram como cordilheiras, e levava na escalada dias e mais dias, me aventurando pelas suas encostas. Os jardins que circundavam a entrada do colégio se fechava a minha vista como uma floresta intransponível. Por que perdemos esses deliciosos devaneios, será que a criança dentro de nós adormeceu, como no poema do Menino Impossível de Jorge de Lima, ou será que se escondeu debaixo do fogão, ao lado do porquinho-da-índia, de Manuel Bandeira.

As aventuras perduravam em casa, quando deixava o material e corria para a pequena saleta que nos servia de biblioteca, onde feliz da vida encontrava Monteiro Lobato a minha espera, as brincadeiras começavam sempre assim, nos livros, depois corríamos os meninos da rua e eu para criarmos nossos brinquedos, além das pipas, bicicleta, corridas (meu Deus por que corríamos tanto), pulávamos carniça, jogávamos taco, futebol (eu era o melhor goleiro do quarteirão), e quando a tardinha se anunciava corríamos ao terreno baldio e como em Ferenc Molnar, nós nos tornávamos os Meninos da rua Paulo e defendíamos com unhas e dentes a entrada de nossa rua dos meninos da Rua 4, abaixo da nossa. Recriávamos cenas, vistas em filmes, cenas duras de guerra com saldados feridos por mamonas e tudo mais, depois, ouvindo as mães aos berros corríamos para nos lavar, jantar e recarregar a bateria tão bem usada durante as tardes.

Naquela época o máximo que se tinha de tecnologia era o tão sonhado Atari, e mesmo ele não substituía as aventuras que do portão para fora nos esperava, mesmo por que nossas mães diferentes das de hoje, não tinham o medo que as assola, podíamos passar da meia noite correndo na rua, não havia perigo, a não ser é claro se fosse descoberto em seu esconderijo e tivesse que na próxima rodada procurar os amigos no esconde-esconde.

Desenhávamos no asfalto, fazíamos fogueira e assávamos batata, dividíamos os víveres entre nós, éramos guerreiros, gladiávamos nos céus como Barão-vermelho, com nossas pipas, cavalgávamos os morros distantes com nossas bicicletas, sempre juntos, uma romaria de buzinas irritantes.

Não havia lugar para as meninas e suas coisas de “meninas”, não a víamos como as donas, do que mais tarde descobriríamos, de nossas vidas, não imaginávamos que seriam elas que nos poriam feito loucos em madrugadas de chuva para saciarmos o desejo de sua gravidez. As meninas tinham lá suas coisas, cosias de menina, bolos de barro, comidinhas com a grama, chá com as bonecas, as Barbyes passavam longe das crianças naquela época, as casinhas tão bem copiadas das mamães, que ficavam irritadas quando algum talher, prato ou panela sumiam enigmaticamente da cozinha.

As meninas não eram apenas as miniaturas de mulher, lembro que havia algumas em minha rua, que dispunham de forte poderio de fogo, e travávamos batalhas colossais que poriam os senhores da guerra no chão, ou desesperados por nossos planos militares. Planos esses que não vendíamos, não havia espaço para espionagem, éramos fieis uns aos outros. As brigas aconteciam, como em todas as ruas, se tornaram mais intensas quando a jovialidade nos atingiu e passamos a ver as meninas como as domadoras dos leões que trazíamos dentro de nós.

Corríamos o mundo, assim como vejo hoje em alguns lugares, infelizmente essas atividades ficaram mais fortes e presentes em textos de grandes autores (tentei citar alguns), pinturas, filmes nostálgicos (hoje vemos muitos filmes baseados em momentos de nossa meninice, o sentimento de saudade agora sai do coração e ganha as telas dos cinemas). O mundo mudou e com ele as crianças também. Vejo as crianças de hoje, o quanto perdem diante dos computadores e videogames de ultima geração. Saudade de quando o verde imperava, os morros eram fortes, os córregos corredeiras, os pais ídolos, os irmãos inimigos, as brincadeiras a única razão para nos deixar longe de problemas, drogas, violência.

Flávio Mello

Flávio Mello é palestrante, professor e escritor, publicou Seleção Natural, Amar só se for armado, ambos de contos, o livro infanto-juvenil João e seu baú mágico, e escreve periodicamente no site www.escritorflaviomello.blogspot.com.

E-mail: prof_flaviomello@hotmail.com

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